quarta-feira, 16 de março de 2011

A CAIXA NUCLEAR DE PANDORA


A grande tragédia da ciência: o  massacre de  uma bela hipótese por parte de um horrível fato.
        (Thomas Huxley, escritor)



            Vivemos um momento impar na história da humanidade marcado pelo acompanhamento em tempo real dos fatos. Outrora, sem os avanços dos meios de comunicação, era muito mais fácil iludir, manipular, esconder. Não obstante isso, o péssimo hábito de distorcer ainda vige. Desde o início do acidente nuclear no Japão o verbo mais recorrente nos pronunciamentos oficiais e reproduzido pela mídia é “controlar”. Com um pouco de atenção, não é difícil perceber a batalha incessante que está sendo travada pela semântica oficial e a realidade. Ocorre uma explosão e logo vem a nota oficial garantindo que o fogo está “sob controle”. Toneladas de fumaça radioativa vazam para atmosfera e logo surge a palavrinha mágica, afirmando que a liberação foi “controlada”. Os níveis de radiação se espalham a quilômetros de distância e ali está ela de novo: o governo vai “controlar” a radiação.
            Segundo o dicionário Houaiss, as acepções vernaculares para o verbo são:

1.    submeter a exame e vigilância estritos; fiscalizar, monitorar;

2.    exercer ação restritiva sobre; conter, regular

3. assegurar o controle imediato de (algo), por meio de reflexo motor, ou por habilidade

4. exercer poder, autoridade sobre (alguém ou algo); manter sob o próprio domínio; dominar.
(...)


            Com boa vontade, pode-se aceitar que o governo japonês e a empresa responsável pelas usinas estejam conseguindo controlar a situação, mas conforme as duas primeiras acepções do verbo, acima referidas. Contudo – a questão capital – é que se está usando o verbo controlar não no sentido de se estar fiscalizando ou tentando conter, mas no sentido de ter domínio da situação, de ter habilidade e autoridade para frear e neutralizar os riscos (acepções 3 e 4). Neste sentido, o que há é o velho costume de distorcer a realidade e um esforço gigantesco de embaçá-la através da semântica.
            Neste triste desastre, as palavras e a realidade estão divorciadas e a primeira vítima foi a verdade. Falar em controle da situação com progressiva evacuação, com sucessivas explosões, com crescentes vazamentos, contaminações e vítimas é um ataque à razão.
            Oponho-me à energia nuclear também por isso. Não há eficiente controle possível quando a caixa nuclear de pandora é aberta. O que se tem – e é visível neste episódio – são incertezas, medidas paliativas e tentativas desesperadas e desumanas[1] de evitar uma catástrofe colossal, sempre e sempre potencialmente presente em qualquer usina atômica. Não bastasse isso, a radiação tem uma peculiaridade perversa. É um inimigo invisível, incolor, inodoro, imprevisível. Partículas atômicas se espalham pelo ar, na água superficial e subterrânea, em animais, alimentos, em objetos inanimados, no núcleo de nossas células e na mente da população exposta. Seus vetores de contaminação são amplos e o tempo de radioatividade da maioria dos elementos é quase infinita, se comparada aos parâmetros humanos. Por tudo isso, a dimensão dos estragos só pode ser aferida muitos anos depois, não raro atingindo gerações futuras.
            Some-se a isso que desastres atômicos despertam uma das forças mais potentes, primárias e nocivas do ser humano: o medo atávico. Diante de um inimigo tão poderoso, perverso e invisível o universo psico-emocional das pessoas é massacrado, sobmetido à tortura das piores incertezas, que afeta decisões simples, como consumir uma água suspeita, até aspectos centrais de suas vidas como decidir sobre o futuro, inclusive sobre abandonar sua cidade natal e sobre o risco de ter filhos, onde se tenha havido grande exposição à radiação. Importante dizer que o medo da radiação é daqueles raros, que vazam da mente individual e contaminam a atmosfera psíquica coletiva e promovem um estado geral de sofrimento, ansiedade e desespero.
            O simples risco de um desastre atômico paralisa e sufoca a economia interna e externa, afetando em cadeia todos os segmentos da sociedade e, geralmente, deságua no desabastecimento da população do entorno, que se vê privada do básico para sobreviver. E se tudo isso está acontecendo num dos países mais desenvolvidos do mundo, um líder em tecnologia de ponta, um dos mais preparados para estes desastres, com um povo educado, paciente e organizado, que esperar de acidentes nucleares noutras partes do planeta?
            Destaco, por fim, outros dois motivos pelos quais repudio a energia nuclear. Primeiro é de natureza ética. Não há qualquer justificativa ética – sequer razoável - para deixar para as futuras gerações verdadeiros lixões atômicos, repletos de rejeitos radiotivos que estarão ativos por milhares de anos, sempre aptos a libertar o desastre. Segundo, o acidente nuclear do Japão provou – mais uma vez – os limites da Ciência e da tecnologia. Até então o que se pregava era a segurança total[2]. Não apenas isso é mentira, como também está se provando que aberta a caixa nuclear de pandora, tudo pode acontecer, algum “controle” ou o desastre. O que se vê, ao vivo, é a realidade conduzindo o funeral de mais um mito, de outra falácia. Tomara que a vida replique a mitologia grega e no fundo da caixa de pandora encontremos a esperança.
 

 

[1] É justo, ético e correto expor e, por vezes condenar, dezenas de trabalhadores - que são pais de famílias - à morte nas tentativas de evitar o desastre total?
[2] Agora, pós-acidente, começam a pipocar os vários riscos que existem à segurança de usinas nucleares, tais como desastres naturais, acidentes técnicos e humanos, ataque de rackers, ataques terroristas, etc...

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